sábado, 26 de maio de 2012

Espaço Cultural



2º CONTO ¹
                                                                                                Leda Torres de Andrade ²

O escritório do Coronel Antero era território proibido a seu bando de netos, que eram tão numerosos como as estrelas do céu. Quando se juntavam punham-se a praticar estripulias que nem o mais ardiloso dos gênios poderia imaginar. Como tudo o que é proibido é cobiçado, quase tudo naquela casa era cobiçado. O Coronel apreciava o requinte e sua esposa, como dona de casa perfeita e caprichosa, não admitia estripulias. Eram ambos extremamente severos. Portanto as proibições não se restringiam ao escritório, que continuava sendo um lugar sagrado. Para não desorganizar a casa, os moleques eram despachados para o quintal, mas não tinham licença de tocar nas frutas sem o consentimento de um dos dois.

Entretanto, curiosamente, os netos não se sentiam constrangidos ou sequer magoados. Havia o bem-querer. O avô era o chefe inquestionável e todos, filhos e netos, lhe prestavam culto.

Apesar de morar em uma cidadezinha despretensiosa, nada despretensiosa era a vida do Coronel. Cultuava as boas coisas do bem viver e possuía certo savoir-faire. Por conseguinte seu ambiente de trabalho não era impessoal ou frio. As paredes eram cobertas por grandes estantes que guardavam não só livros técnicos, constituições, códigos e leis, mas livros de grandes pensadores, filósofos e romancistas famosos. Havia os de grandes historiadores e mapas belíssimos.

No meio da sala arejada por três janelas ficava a primorosa escrivaninha torneada, com um tampo de vidro, onde se empilhavam autos, pastas e folhas de papel seguras por pesos de cristal. A um canto uma jarra de cristal sempre arrumada com rosas do jardim que havia ao lado. Perto da porta de entrada havia a escrivaninha alta, onde ele trabalhava de pé, quando as costas lhe doíam. Porque, apesar do porte desempenado, ele era barrigudo. E o peso da grande barriga lhe forçava a coluna vertebral. Mas não lhe vergava as costas. O aprumo de seu porte lhe conferia grande dignidade.

A maioria dos constituintes do advogado era de fazendeiros e quase todos matutos. As escolas eram raras e mandar filhos para estudar em capitais requeria dinheiro e idealismo. E a roça se ressentia de ambos. Por isso os fazendeiros padeciam de falta de instrução. Poucas vezes iam à cidade.

Moravam em grandes casas de adobe, quase sempre com bicas d’ água na porta da cozinha e porcos soltos fuçando a terra e enchendo os terreiros com bichos de pé. Mas quando iam a qualquer recanto que fosse, fazendas vizinhas, arraiais ou cidade, exibiam suas posses em primorosas arreatas forradas com coxinilho felpudo e relhos com cabo de chifre trabalhado em tiras de couro bem trançadas. As estradas eram precárias, de sorte que os homens engoliam a poeira dos caminhos ou os cavalos amassavam o barro e chafurdavam nas poças d’ água lodosas. Nas cidades tudo os encantava.

Foi o que se deu com um roceiro curioso e inteligente que tocava uma demanda com um vizinho por conta de uma aguada. A lei do uso da água é intrincada como soe acontecer com a maioria das leis. E o pobre homem não conseguia atinar com a causa da morosidade da demanda com o vizinho. E, pois, resolveu procurar o advogado, o Coronel Antero. Tendo cavalgado horas e horas, chegou à porta, apeou, amarrou o cavalo na estaca e entrou no recinto sagrado para os netos. O Coronel, gentil, ofereceu-lhe água fresca e iniciaram a conversa. Assunto difícil, cheio de recursos e silogismos e os dois trocavam informações e indagações.

- Olha compadre, obtemperava o advogado. O córrego divide as duas propriedades. A água, portanto pertence aos dois. Faça sua aguada mais pra cima, passe um fio de arame e o problema fica resolvido. Se você encasquetar e levar a coisa na lei, o juiz tem que ouvir as partes, arrolar testemunhas, e estas coisas demandam tempo, você sabe.

- Eu já fiz isso, Coroné. E o compadre vizinho disse que meu gado ta sujando a água.

O roceiro ia e vinha, informava-se, indagava, trocava idéias, mas seus olhos presos nas estantes repletas de livros demonstravam seu encantamento.

Notando o interesse do homem, que já não prestava atenção à conversa que o trouxera, o advogado indagou curioso:

- Gosta dos livros, compadre? Notei que não tira os olhos da minha biblioteca...

Profundo suspiro escapou do peito do matuto que parando em frente a uma das estantes afirmou com simplicidade e, sem se dar conta disso, revelou sua grande sabedoria:

- É Coroné, nois num tem bibrioteca. Nossa bibrioteca é o povo. Cada povo representa um valume e cada valume uma nação adeversa.



¹ Este 2º Conto faz parte de um livro ainda não publicado que a autora dedica a seus netos para que eles tomem conhecimento de suas origens.

² A autora é neta do Antero e da Alcida, filha do Niso e da Alda, viúva do Galeno Andrade, tem seis filhos e treze netos. É artista plástica, com uma vasta obra em telas, murais e desenhos. Como escritora, com obras não publicadas, tem guardado um romance histórico sobre a Jagoara, um livro de contos e o livro da capa verde que reúne suas poesias. Mora em Belo-Horizonte.

Um comentário:

  1. Tia Ledinha, minha linda, segunda mãe, tem 14 netos. Adriano e Lucas, filhos da Nilzinha. Rafael, do Galeninho. Diego, Lorena e Santiago, filhos do Rubio. Ana Julia e Luciana, filhas do Leonardo. Sabrina, Pedro e Thais, filhos da Eliana. Henrique, Guilherme Vander e Ester, filhos do Guilherme. São 14 os felizes netos de tão dedicada avó!
    Denise, filha de Maria Alcida

    ResponderExcluir